Conheceram-se na boate Proibidu’s, na Rua Amaral Gurgel, lá pelos idos dos anos 90. Sandra era uma travesti, habitué do local; Germano era o responsável pela limpeza do banheiro. Era uma noite de sábado, casa lotada, gente saindo pelo ladrão, Sandra foi ao banheiro para dar uma aliviada e, também, uma retocada na maquiagem, e lá encontrou com Germano, que naquele momento limpava uma latrina infecta e fedida. Vendo aquilo, Sandra apiedou-se dele e chamou-o de lado. Quis saber o nome
– Germano
Quantos anos
– 57
(parecia mais velho)
Se casado ou solteiro
– Viúvo
Se gay ou bofe
– Sou homem, senhora
Onde morava
– Moro na Vila Nhocuné.
O resto da conversa não deu para ouvir: foram para o banheiro reservado para deficientes e só saíram de lá muitos minutos depois. Germano estava então visivelmente cansado. Sandra, por sua vez, não esboçava o menor sinal nem de cansaço nem de nada: mantinha a mesma altivez de sempre.
A partir daquela noite, os encontros passaram a ocorrer de forma mais regular e, também, fora da boate, de forma mais discreta: ora na casa de um, na Vila Nhocuné, ora na quitinete de Sandra, no Copan.
Não demorou muito para juntarem os trapos: Germano deixou a pequena casa onde morava de aluguel, na Zona Norte de São Paulo, e foi morar com Sandra. A comodidade de poder ficar perto do trabalho havia pesado na decisão.
Trouxe quase nada na mudança. Além de algumas poucas peças de roupa
(tudo que tinha)
só a cama de solteiro, que juntou à cama de solteira de Sandra, formando assim uma cama de casal improvisada.
Alguns meses depois de terem ido morar juntos, a Proibidu’s fechou as portas, colocando Germano no olho da rua. Desempregado e sem esperanças de encontrar um novo emprego
(a idade pesava)
poucas semanas depois de ter sido mandado embora, Germano passou a beber de forma exagerada. Todos os dias, ao final da tarde, depois de encarar o dia todo na sua nova função de “do lar”, encontrávamos ele num bar ali nas imediações do Copan, bebendo cachaça. Quando voltava para casa, sempre embriagado, batia em Sandra, que, injuriada, gritava por socorro ao mesmo tempo em que desferia alguns golpes certeiros em Germano. No saldo final, ambos ficavam muito feridos, física e emocionalmente. Não raro, nessas ocasiões, adormeciam cansados de tanto brigar. Essa foi a rotina do casal por quase duas semanas, até que o dia da inevitável separação chegou: era isso ou morreriam os dois. Sandra já havia prometido dar parte na polícia de Germano, que por sua vez parecia afundar-se cada vez mais nos problemas que seu recém adquirido alcoolismo trouxera.
Ao despedir-se dele, Sandra disse
–Você está proibido de voltar aqui
E então completou com um
– Nunca mais quero te ver, nem no inferno nem no céu!
Bem enfático.
Naquele dia, Germano saiu da quitinete de Sandra, levando consigo só a roupa do corpo. Não tinha mais para onde levar sua cama. Não tinha para onde ir. Despojou-se até mesmo das dores que trazia no peito: pesariam demais em sua caminhada sem rumo.
No fundo, no fundo, ainda amavam-se, mas não tinha mais como viverem sob o mesmo teto.
Germano saiu caminhando e, poucas quadras depois de sair do Copan, quando atravessava a pé a esquina da Ipiranga com a São João, viu num cartaz a oferta de um emprego que lhe interessou: era para uma vaga de cuidador de estrelas. Consistia basicamente, como ele veio a saber ao aproximar-se do homem-placa, em identificar estrelas perdidas, solitárias, desamparadas no céu noturno de São Paulo, ora cinzento, ora tomado pelo reflexo das luzes da cidade, e dar-lhes abrigo e alimento, até que alguém as adotasse.
Germano foi logo contratado. O encarregado das contratações da empresa, que prestava esses serviços, gostou dele. Viu nele um grande potencial. Germano não cabia em si de alegria quando, depois de uma breve entrevista, ouviu da boca do encarregado da empresa um
– Está contratado
Logo seguido por um
– Pode começar amanhã mesmo.
No dia seguinte, logo ao anoitecer, mesmo com alguma dor no corpo por ter dormido na rua, e sentindo-se um pouco fraco de fome, lá estava Germano pronto para seu primeiro dia, na verdade, sua primeira noite de trabalho. Passaria o expediente todo a procurar estrelas perdidas, solitárias, desamparadas no céu noturno de São Paulo, a fim de dar-lhes abrigo e alimento, até que alguém as adotasse. Aquela noite interia, porém, passou sem que nenhuma estrela pudesse ser localizada: a pesada névoa que encobria o céu da cidade não dera nenhuma brecha.
Já o dia seguinte
(um domingo)
começava lentamente a amanhecer, a névoa da noite ia sendo dispersada numa lentidão de beatas em procissão. Era final de expediente para Germano, quando ele, ao passar pela Rua Augusta, notou uma travesti sentada à beira da sarjeta, sobre um enorme pedaço de tecido coberto por lantejoulas prateadas
(um chão de estrelas)
em meio ao lixo deixado por aqueles que ali tinham estado a festejar a noite toda.
Embriagada, a travesti parecia alheia ao sol que ia esquentando cada vez mais seu rosto e seu corpo seminu, fazendo ambos pingarem suor. As lantejoulas do tecido que lhe servia de assento refletiam a luz do sol, de uma forma festiva, à maneira daqueles globos de espelhos de casas noturnas.
As pessoas que por ali passavam depositavam olhares curiosos sobre a vitrine que estava atrás da travesti: era de uma sex shop. A travesti mesmo nunca era notada, era como se fosse mais um pedaço de lixo jogado na sarjeta. Só Germano teve olhos para notá-la.
Ele aproximou-se dela. Quis saber o nome
– Sandra
Quantos anos
– 43
(parecia mais nova)
Se casada ou solteira
– Separada
Se gay ou bofe
– Estrela
Onde morava
– Moro no Copan.
Germano tomou-lhe a mão e, com cuidado, levantou-a da sarjeta. Pegou o pano com lantejoulas onde ela estava sentada e, com ele, cobriu todo o corpo dela. Com o corpo envolto pelo enorme pedaço de tecido coberto por lantejoulas, Sandra parecia uma estrela de cinema, a vestir um longo de gala. Da janela de uma pequena casa de um cortiço ali ao lado, uma velha senhora, recém acordada, acompanhava a cena toda enquanto tomava seu café e alimentava seus muitos gatos.
Germano e Sandra saíram dali caminhando, de mãos dadas, devagarinho, descendo a Augusta. No caminho, ali na esquina da Marquês de Paranaguá, encontraram com um velho conhecido de Sandra, João, que apresentou-se a Germano dizendo ser um sereio
– Meio homem, meio piranha
Explicava
– Mas inteirinho biscate
Complementou, dando ênfase ao Mas.
Germano cumprimentou João, já emendando uma despedida
(estava cansado)
e seguiu caminhando com Sandra até sumirem de vista, nas imediações da Praça Roosevelt, quando o sol da manhã já ia alto.
Sandra foi assim a primeira estrela resgatada por Germano em seu novo emprego.