Sempre que avistava meu pai a se aprontar para ir à feira, minha mãe lhe pedia:
– Aproveita e vê se traz um ou dois pacotes de laranja.
E frisava:
– Mas escolha aquelas de casca fina.
Certamente, por oferecerem mais suco ao serem espremidas.
Ainda assim, meu pai voltava da feira trazendo, nas sacolas carregadas de várias frutas, um ou dois pacotes de laranjas de casca grossa, todas elas praticamente secas por dentro. Para ele, a casca grossa conferia àquelas laranjas um certo tipo de virtude que faltava às laranjas de casca fina. Qual virtude, não sabia dizer. Justificava-se dizendo, simplesmente:
– Laranjas com casca grossa são mais resistentes, duram mais.
Justificativa que não convencia minha mãe, que, então, decepcionada, reclamava:
– Essas laranjas não tem suco nenhum. Não havia lhe pedido para escolher as laranjas de casca fina?
Ao que meu pai, já então ocupado a cortar uns limões para a caipirinha, dava de ombros.
Imprestáveis para a função que minha mãe gostaria de lhes conferir
(suco)
as laranjas de casca grossa eram depositadas na fruteira, onde ficavam até apodrecerem, sendo, então, jogadas ao lixo.
Exceto por essa pequena desavença em relação ao tipo de laranjas a serem adquiridas, meu pai e minha mãe, mesmo sendo muito diferentes entre si, tinham uma dinâmica de casal bastante harmônica: mesmo após mais de trinta anos de casamento, pareciam ainda se amar – ao menos, tratavam-se com carinho e respeito.
A relação entre os dois seguiu bem, por anos a fio, sem nenhum sinal mais evidente de atrito.
Até que, de uma hora para a outra, meu pai, já então com setenta e dois anos, passou a responder de forma aleatória aos cumprimentos que recebia, nos seus passeios diários pela pequena cidade.
Dizia:
– Boa noite.
quando o cumprimentavam com um
– Bom dia.
Ou
– Vou à padaria.
em resposta a um
– Como vai?
Preocupada com o surto do marido, minha mãe levou-o ao médico, que, após analisar alguns exames, nada encontrou de errado na cabeça de meu pai.
– Parece o cérebro de um jovem.
Diagnosticou o médico, enquanto passava o cartão do plano de saúde pela maquininha de cobrança.
Naquele dia, minha mãe deixou o consultório do médico de mãos dadas com meu pai, e seguiram caminhando pelas ruas em direção à casa que ficava em um bairro próximo ao centro da pequena cidade, a mesma casa que um dia foi “nossa”, mas que passou a ser apenas “dos meus pais” quando de lá parti para estudar e trabalhar fora.
Era o final de tarde de um dia qualquer da semana, no mês de dezembro, quente como um braseiro em chamas. Baixando no horizonte, o sol parecia de fato uma brasa viva, ainda incandescente.
Quando passavam em frente a uma barraquinha de sucos, minha mãe convidou meu pai para tomar um suco de laranja geladinho. Perguntou a ele:
– Quer um suco de laranja gelado?
Ao que ele, de pronto, respondeu a ela:
– Acho que perdi.
Intrigada, mas pensando que meu pai continuava a responder de forma aleatória ao que lhe perguntavam, minha mãe quis saber:
– Perdeu o quê?
No que meu pai, com um olhar vazio a mirar o nada, respondeu:
– Perdi a capacidade de te amar.
E minha mãe:
– O quê!?
Com lágrimas começando a escorrer pelos olhos.
– Não te amo mais, Ana.
Meu pai afirmou, sem alterar o tom de voz. E minha mãe reagiu:
– Como pode dizer isso, Otávio?
Já num tom de voz bastante alto.
No que meu pai então respondeu, ajustando o tom de voz ao seu olhar triste:
– É o que sinto.
Em prantos, minha mãe, já crente de que aquela resposta não tinha nada de aleatória, pegou o copo cheio de suco de laranja que o vendedor lhe entregara e arremessou-o sobre o rosto de meu pai.
– Está vendo, Otávio! Era para fazer sucos assim que eu lhe pedia para comprar laranjas com casca fina!
Minha mãe gritou, com a voz embargada, sentindo sobre si o peso do olhar curioso dos poucos transeuntes que, naquele momento, por ali passavam. Momento em que ainda era possível ouvir o ruído dos bandos de andorinhas, sobrevoando a praça, ocupadas em encontrar um lugar seguro para passar a noite, em meio às folhas das palmeiras. As andorinhas voavam por entre as copas altas daquelas árvores, totalmente alheias aos destinos das gentes que andavam lá no chão, metros e metros abaixo delas.
Muitos anos se passaram desde aquele episódio, e no final das tardes de verão, quentes como feridas em alma viva, ainda é possível avistar o sol a se por no horizonte, enquanto as andorinhas sobrevoam a praça, buscando um local para dormir nas folhas das palmeiras.