Ela tinha o dom de cuidar, embora, ao longo de sua vida, pouco ou nenhum cuidado tivesse recebido, fosse de seus pais, seus parentes, ninguém. Chamava-se Maria, nome bastante comum para as mulheres que, como ela, habitavam aquela comunidade humilde, nas franjas da metrópole, ou, como diriam alguns, nos seus arrabaldes.
O barraco onde morava abrigava mais seis pessoas: seu pai, sua mãe e seus quatro irmãos mais novos, todos meninos ainda impúberes. Sendo a única pessoa da família a trabalhar, Maria era responsável pelo sustento de todas aquelas muitas bocas. Dentro do infinito limite de forças de uma mulher, conseguia trazer algum dinheiro para casa por meio de alguns bicos de faxineira, alguns biscates, ou mesmo pela mendicância. Para ela, a mendicância por vezes mostrava-se mais atraente, pois ao menos lhe permitia um maior controle do tempo, além de evitar a subordinação a patrões temporários, que não raro tentavam convencê-la a aceitar um acréscimo de pagamento, por meios outros que não o simples desempenho das tarefas domésticas de faxina para as quais havia sido chamada.
Foi num sábado um pouco nublado, que Maria saiu de casa logo pela manhã, ainda antes do sol nascer, acompanhada de um dos quatro irmãos, o mais novinho deles. Moisés era seu nome. Levando-o pela mão, pegou um ônibus para o centro da cidade, onde chegaria, se tudo corresse bem, dali a quase duas horas, tendo uma baldeação pelo caminho.
Numa semana que tinha feito poucos bicos, o dinheiro ficou demasiadamente curto, não lhe restando alternativa, naquele final de semana, senão mendigar para conseguir levantar um dinheiro extra, ao menos o mínimo para passar a semana seguinte com a despensa abastecida com o básico para livrar de passar necessidades as muitas almas sob sua guarida.
De fato, a situação da família era de penúria. Pai e mãe não eram propriamente idosos, mas devido a uma doença em comum que médico nenhum tinha conseguido diagnosticar, contavam com pouca autonomia até para as tarefas mais simples do dia a dia. Viviam, assim, tão dependentes de Maria quanto os irmãos mais novos. Estes passavam o dia a vagar pelos barracos da redondeza, buscando a sorte de poder comer a convite da mãe, tia, avó ou madrasta de algum amiguinho com quem brincavam ali na comunidade.
Depois de embarcar Maria e Moisés, o ônibus seguiu pela estrada de terra do bairro distante, trazendo para dentro, a cada ponto de parada, mais e mais passageiros. Era um bairro dormitório, que servia apenas a função de abastecer a cidade com mão de obra barata. Lar de pedreiros, lixeiros, porteiros e Marias.
Quando deixava a estrada de terra que cortava aquele bairro periférico, e estava prestes a iniciar o trecho asfaltado da avenida principal do próximo bairro dentro do itinerário até o centro, na fronteira entre a periferia e a cidade, o ônibus parou.
Sentada em um dos últimos assentos, lá na parte traseira do ônibus, Maria, aflita, tentava entender o que ocorria. Ela queria chegar cedo ao centro, pois, assim, conseguiria tomar um café quente e comer ao menos um pão com manteiga, na padaria cujo gerente, generoso, vendo a situação de miséria com que Maria ali volta e meia aparecia, costumava acomodá-la, mais o irmão que a acompanhava, numa mesa ao fundo do salão da padaria e, então, pedia para que lhes fossem servido um desjejum simples, mas suficiente para dar-lhes força para a dura luta pela misericórdia das multidões que caminhavam pelo centro, local onde a tal da misericórdia era por tantos disputada e, também por isso, demasiadamente escassa. Devido ao tráfego parado, pelo visto, naquele dia, Maria e Moisés, àquela hora já famintos, perderiam a chance daquele café da manhã da padaria.
Muito embora fosse um sábado de manhã e nem bem tivesse ainda cruzado os limites do primeiro bairro do longo percurso até o destino, o ônibus já estava lotado. Dentro dele, os passageiros estavam impacientes. Alguns ameaçavam descer, outros xingavam o motorista, o governo, batiam e tentavam quebrar assentos, janelas, e havia também aqueles que, assim como Maria e seu irmão, estavam fracos demais para qualquer outra reação que não fosse a simples resignação silenciosa.
Lá fora, diante do ônibus e de todos os demais veículos que ali se encontravam parados, passava uma turba enorme de pessoas, como que a seguirem uma procissão, a gritar quase em uníssono o nome de algum messias. Montadas em motocicletas as mais variadas, seguiam dirigindo ora sozinhas, ora em duplas. Com seus motores e escapamentos, as motos faziam o barulho equivalente a dezenas de trovões.
Seguindo por muitas horas, ininterruptamente, a procissão de motos criou uma espécie de muralha entre o bairro dos mais humildes e o resto da cidade. Aqueles que tentavam cruzar, num gesto de puro desespero, eram esmagados e estraçalhados pelas rodas que, ferozes, formavam a turba.
Cientes da morte trágica que lhes aguardava caso tentassem cruzar a muralha, e impedidos de voltar, os que permaneceram parados no cruzamento, a aguardar o fim da procissão, assim ficariam por mais um, dois, três, quatro anos, tempo total de duração daquela procissão, caso suportassem ali esperar por tanto tempo. Mas ninguém aguentaria e tampouco aguentou esperar todo esse tempo. Bem antes disso, em sua maioria nos dias seguintes àquele, todos que ali ficaram parados no tráfego, Maria e Moisés aí incluídos, morreram de fome.